23/09/2013

A Dama de todas as Noites - Conto


            E lá estava ela novamente, tentando encontrar alguém com quem compartilhar suas palavras, alguém que não tentasse lhe arrancar a cabeça do pescoço pelo que ela é, alguém na mesma situação ou algo parecido, que pelo menos a entendesse, mas aquilo parecia impossível. Nesse enorme mundo em que vivia, ela era a única que tinha sido marcada com aquilo, uma coisa que a acompanhará pelo resto de seus dias, que ela nem sabe se terão fim.

            Fugindo, se esgueirando, caçando para se alimentar. No início era simples, pois seu dono a ajudava trazendo suas refeições, mas após o ocorrido com aquele grupo de fanáticos achando que eram os salvadores do mundo, ela acabou ficando sozinha. “Ah Zé! Por que você foi tão desatento?” ela pensa, mas nunca saberá, não até descobrir o porque de seu senhor ter se deixado levar pelos prazeres desse mundo e pela morte iminente. Não até descobrir que ele tinha desistido de tudo e achava que seu destino já estava traçado, pois descobriu coisas horríveis sobre si mesmo e sobre seus semelhantes, que ela nunca sonhou em saber.

            Aquele beco parecia estar mais escuro essa noite. Ela sempre passava por ali, mas até parece que nunca tinha reparado naquelas latas de lixo num canto. Talvez porque nunca tinha precisado disso antes. Talvez porque sempre passava com pressa por ali e nunca pensou que voltaria àquele lugar depois de tudo o que aconteceu.

Ela ouve um barulho.

Não como aqueles que ela costumava ouvir sempre naquele local. Ratos. Gatos. Mendigos. Não. Aquele ruído era diferente. Como se chamas ardessem em brasa e no fundo, uma voz sussurrasse palavras obscuras que ela ainda não tinha entendido o significado, ou não conhecia. Ela se vira, tem alguém a vigiando. Do alto uma sombra passa e desaparece em meio a escuridão. No fundo ela sabe quem é, mas não quer acreditar que aquilo seja possível. Que algum inimigo a tenha encontrado. Não da forma como ela tem se escondido desde o início. Aquilo que seu senhor fez foi uma isca, ela tinha certeza disso, mas também não queria acreditar que tudo tivesse acontecido tão rapidamente.

            - Espere! – sussurra uma voz suave e agradável. Parece pertencer a um adolescente na flor da idade, com seus 15 anos no máximo, pois existem vestígios de troca de tons no som da sua voz. – Te procurei por tanto tempo, Vanessa. –

            Como ele sabia o nome dela? Isso era impossível! Sua família estava longe, pois ela havia os deixado em sua cidade natal pra fugir e evitar transtornos, ela havia forjado sua própria morte, mas já fazia muito tempo. Meses ou anos. Só agora ela tinha parado pra pensar no tempo que se passou, e não se lembra ao certo quando tudo começou. Não se lembra de nada. Parece que, quando a eternidade é seu fardo, você não tem tempo pra pensar no quanto o tempo está se passando.

            - Quem é... -

            - Você não me conhece. – ele a interrompe. Aquela voz definitivamente é de uma criança. – Estou aqui pra te ajudar, mas você tem que confiar em mim. Venha. Me acompanhe, pois estamos sendo observados... –

            Um tiro faísca do lado esquerdo, batendo numa lixeira. Parece até ter acertado ali propositalmente. Os dois correm o mais rápido que podem. Ela está desarmada. Tudo ficou em seu antigo esconderijo, com seu mestre despedaçado. Seu único companheiro, com suas armas, roupas e tudo o mais que ela precisava pra viver essa sua vida. Tudo se queimou em uma enorme bola de fogo. Ela observa o rapaz. Ele tem braços fortes e ela ouve sua respiração. Aparenta ser como ela, mas seus traços, seu sangue pulsando e seu coração batendo a confundem, apesar de ela saber que isso é possível. Sombras passam sobre eles, faíscas de tiros continuam a ser vistas, junto com o barulho característico da pólvora sendo explodida no cano da arma. Ela apenas segura reciprocamente na mão direita do rapaz, sendo guiada para algum lugar seguro. “Assim espero...”

                                                                           ~ ~

            Afugentados pela perseguição, os dois avançam pela escuridão daquela noite sem lua, buscando disfarçar seus rastros, algo em que o rapaz parecia ser muito bom, tomando rumos inexplicáveis durante o trajeto e deixando o mínimo possível de evidências de que passaram por aquele local. Depois de algumas horas de caminhada, onde Vanessa se perguntava se deveria estar seguindo aquele estranho, ou confiando nele, ele para em frente a uma casa numa avenida movimentada daquela cidade. Os perseguidores já tinham desaparecido há bastante tempo. Pelos sons de seus sapatos tocando o chão e suas vozes sussurrando uns para os outros, Vanessa conseguiu identificar três pessoas, mas não tinha certeza se eram só três.

            - Chegamos! – ele diz, se virando para Vanessa. – Venha. Entre. Tem alguém que gostaria de falar com você. –

            - Mas... quem é você? – ela pergunta num sussurro, curiosa.

            - Confie em mim. – o rapaz diz. – A pessoa que você conhecerá agora poderá te dar explicações melhores. -

            Ela entra. Seu instinto de sobrevivência e sua intuição dizem que não terá maiores problemas, e que pode seguir sem preocupações. Ela passa por uma sala com dois sofás novos e bonitos e enxerga um homem sentado em uma cadeira giratória de braço com estofado na cor vermelha e a armação na cor preta, no cômodo logo a frente. O homem veste um smoking grafite e sapatos pretos, possui uma barba delicadamente desenhada em volta dos lábios e no queixo. Um cavanhaque. O homem aparenta ter seus quarenta e cinco anos. Ele a olha com um sorriso misterioso no rosto, como se aquele sorriso escondesse alguma segunda intenção. Vanessa se lembra de somente uma pessoa que a olhou daquela mesma forma em toda a sua vida: seu dono. Ela se aproxima cautelosa, pensativa e curiosa. O homem continua com aquele olhar, agora ainda mais penetrante e satisfeito. Ele parecia maravilhado com o que via.

            - Sente-se, minha cara. – ele disse puxando uma cadeira. Sua voz era igualmente misteriosa, suave, agradável. – Eu estava esperando por você! – Vanessa se sentou sem tirar os olhos do homem. A cadeira era confortável, com um assento macio de veludo, também na cor vermelha, como a cadeira em que o homem estava sentado, mas era uma cadeira fixa.

            - Quem é você? – ela se viu perguntar quase que por instinto, pensando logo em seguida na resposta do rapaz que a tinha trago até ali.

            - Sou um amigo. – diz o homem de meia-idade. – Meu nome é Marcos. Sou como você, ou pelo menos me pareço com você. Eu conhecia seu mestre e... digamos que... devia alguns favores a ele. – seu olhar não mentia. Ele estava falando a verdade. Durante vários anos de existência e convivência com pessoas, Vanessa tinha aprendido a perceber os símbolos que o corpo podia mostrar, descobrindo assim vários sentimentos ocultos por trás de expressões e movimentos corporais.

            - Que tipo de favores são esses? – ela pergunta, curiosa, pois até o momento, pensava que seu dono não confiava em ninguém, muito menos ao ponto de fazer favores pra ele. “Conhecia? Então ele já sabe do ocorrido? Mas... como?

            - Matheus salvou minha vida mais de uma vez! – ele revela. – Além disso, já batalhamos muitas vezes juntos, bem antes de você nascer! –

            “Quantos anos ele acha que eu tenho?
            “Meu mestre nunca me revelou sua verdadeira idade. Eu pensava que era porque ele não sabia ao certo.” ela pensa.

            - Vocês... lutaram lado a lado? Pelo quê? – ela pergunta, ainda mais curiosa.

            Buuuum!
            Uma explosão.

            “Os perseguidores!” – Vanessa pensa, se levantando da cadeira e olhando na direção do barulho.

            A porta da frente voa na direção dela e de Marcos, que bate suas mãos com força na porta, explodindo-a em uma bola de fogo que se alastra pela mesa e pelas cadeiras.

            - Corra! – ela o ouve dizer baixinho. – Rodrigo! Pra onde ele foi? – diz Marcos procurando pelo rapaz que trouxe Vanessa até aqui.

            - Estou aqui mestre! – o rapaz grita do outro lado, já na porta para o próximo cômodo, com duas pistolas nas mãos. Rodrigo atira. Vanessa olha para onde ele estava atirando e vê dois homens vestidos com ternos negros e gravatas verde-escuras, logo atrás deles, mais cinco homens entram pela porta. Ela corre na direção de Rodrigo, Marcos vai logo atrás, protegendo-a, seguido por Rodrigo, que encobria sua fuga.

            - Eu devia imaginar! – disse Marcos. – Eles conseguiram farejar o rastro de vocês. Malditos! Estão cada dia mais perigosos! –

            Eles correm para o fundo da casa. Já é tarde da noite. Marcos abre a porta de um pequeno cômodo próximo à enorme varanda da casa. Vanessa entra e se depara com uma longa e escura escada pra descer. Ela abre a boca pra falar, mas o barulho dos tiros abafa toda e qualquer tentativa de querer dizer algo. Ela tropeça e despenca da escada. E vê sua consciência desaparecendo aos poucos em meio aos estrondos da luta lá em cima.
~ ~

            Vanessa acorda num quarto grande e espaçoso, numa cama macia e com toda a decoração do quarto em branco. Cortinas, roupa de cama, móveis. Rodrigo segura uma bandeja com várias taças daquele líquido vermelho da vida, que era como seu mestre costumava chamá-lo. Vanessa se espantou e hesitou. “Como posso confiar?” – pensou, mas a fome despedaçava seu interior, como se seu estômago sugasse todos os outros órgãos pra dentro dele há horas. Ela esticou o braço e pegou uma das taças. Rodrigo colocou a bandeja numa pequena mesa a sua frente e permaneceu de pé ao lado dela.

            Aquele líquido exalava seu cheiro inconfundível. Algo que circulava em suas veias na medida em que ela o ingeria. Vanessa sentiu sua energia se reconstituindo. Sua vontade era de beber mais e mais, e se embebedar de vida, mas ela se conteve, devolvendo a taça vazia à bandeja à sua frente, enquanto encarava Marcos, que a aguardava paciente.

            - Me perdoe! – ela diz. – Já faz muito tempo... –

            - Não se preocupe minha querida! - ele a interrompeu. - Beba mais se assim desejar! – disse com um sorriso de satisfação, como um pai que vê seu filho dizendo suas primeiras palavras.

            Ela fitou-o por um longo tempo, imaginando tudo o que acontecera há algumas horas atrás. O ferimento grave em seu braço começara a se fechar, como sempre acontecia quando ela se alimentava. Ela ainda se sente agitada pelo que aconteceu com o seu dono e sua experiência de quase ter sido destruída, e ainda tentava imaginar o que aconteceu com os sete homens que atacaram a casa de Marcos antes dela apagar. Vanessa ainda estava confusa com o ataque. Próximo à porta do quarto, ela pôde ver uma pequena gaiola com sete pequenos camundongos, que chiavam e brigavam para escapar dali. Vanessa ainda sente o cheiro de queimado e, quando olha, percebe que ainda está na casa de Marcos, num quarto logo ao lado da sala destruída.

            - Obrigado! – ela agradeceu. – Mas... quem eram aqueles? Por que nos atacaram? -

            - Você é muito preciosa. Por isso está sendo caçada. – Marcos diz.

            - Preciosa? - ela pergunta, revoltada. - Sou só uma besta, um monstro criado por esse mundo de maldições, castigos e... –

            - Não Vanessa! – Marcos a interrompe novamente. – Você não sabe o quanto sua vida mudará de agora em diante. Matheus aguardava pelo momento certo de te contar, mas não teve oportunidade de fazer isso. –

            - O que aconteceu depois que caí das escadas? – Vanessa pergunta, confusa. – Onde estão aqueles homens? –

            - Você os transformou em pequenos ratos. – diz Marcos. – Quando caiu da escada, soube na hora que era você. Você se ergueu no ar e, com um simples movimento de braços, arremessou todos eles contra a parede. Quando caíram, não eram mais humanos. Você é, sem dúvida, a reencarnação de Lilith... -

- Eu os transformei naquilo? E... Eu sou... – Vanessa diz, ainda transtornada, ao ouvir o que Marcos acabara de contar. – A reencarnação de quem? –

            - De Lilith, nossa mãe. – ele repete. – A primeira mulher de Adão, segundo as lendas. – Marcos parece orgulhoso ao dizer isso. - Foi ela quem criou todos os monstros após ter sido exilada para o abismo profundo, quando se questionou se teria os mesmos direitos do homem. –

            Vanessa desde pequena foi criada na filosofia cristã católica. Já tinha ouvido falar da história de Lilith, mas seus pais a fizeram acreditar que aquele mito tinha sido criado pra tentar derrubar a igreja. Além do mais, ela nunca tinha procurado saber mais nada a respeito. No princípio ela esboçou um sorriso, pensando que era uma brincadeira de mau gosto, mas depois, ao ver a expressão sincera no rosto de Marcos, Vanessa começou a se questionar, pois, se podiam existir pessoas como ela, que ela acreditava serem apenas mitos, então podia existir qualquer coisa. Foi ela quem criou todos os monstros... – a voz de Marcos ecoava em sua mente.

Fabiano Lobo

8 comentários:

  1. Eu gostei! Sugeriria um monte de mudanças estéticas no texto, pra dar uma maior movimentação, mais realidade... (pra não perder o hábito), mas é mais importante terminar a história pra depois acertar as arestas. Prossiga!!!

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  2. Huuum!
    Eu gostei do comentário!
    Ainda temos que falar a respeito dessas mudanças.
    Precisava de uma luz, pois estava achando que essa história não tinha lá muita coisa de "diferente" de várias outras que vemos por aí.

    Obrigado pelo comentário, Rosana!

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  3. Por ser um trecho, gostei. Como você disse : "não tinha lá muita coisa de "diferente" " Procure inovar sem medo do desconhecido. Faz parte e é um grande desafio escrever algo novo ou diferente, é o que prende a atenção das pessoas que gostam de ler. Prossiga... tenha em mente, algo inusitado sempre quando vai escrever desvia a história que a pessoa pensa que vai acertar ou imaginar, mas tome cuidado para não ficar igual o Lost, por conta do sucesso, não conseguiu fechar a história e eu nem vi, apenas li comentário. PROSSIGA, Lobo.

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  4. Então Juliano. É um conto, e perguntei pelo fato de ter a possibilidade de se tornar uma história se for mais desenvolvido.

    Vou anotar cada ideia! Inovar é sempre bom, e hoje em dia é o "tcham", é aquilo que há de diferente que acaba levando a história a fazer sucesso. Tenho algumas coisas em mente que aprendi com a sua experiência. Tenho sempre que me colocar no lugar do leitor pra ver como está ficando, e tem também aquelas dicas sobre ser autor independente que nunca me esquecerei.

    É bom ler um comentário seu por aqui, Juliano!
    Conte sempre comigo, amigo!
    Obrigado pela dica!

    E não se preocupe, não assisti ao Lost, mas ouvi comentários e não quero um final fútil e sem graça pras minhas histórias. Na verdade, a parte mais bem trabalhada pra mim será o final!

    Um abraço!

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  5. Fantástico, Fabiano, literalmente, kkk. Doses de suspense na medida certa, narrativa precisa e envolvente, bem maneiro cara. Parabéns.
    -
    É um pouco diferente do que faço. Quando escrevo sobre criaturas, sempre busco escrever pela perspectiva oposta, não dou essa dimensão humana, acho que não conseguiria, kkk. É legal ver os estilos diferentes. Vou arriscar e deixar algo que escrevi, mas ou menos no tema, quando puder ler. Faz parte de uma cronologia na qual estou trabalhando: http://www.onerdescritor.com.br/2014/03/colinas-de-sangue/

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  6. Valeu Evandro!
    Obrigado pelos comentários e elogios.

    Tentei ao máximo demonstrar essa natureza humana dos monstros. A narrativa em terceira pessoa é mais fácil pra mim, acho. E a forma de descrever as criaturas, na minha opinião, deve ser com total suspense, pra que pelo menos as pessoas fiquem imaginando o que realmente é aquilo, essa é a minha ideia ao escrever sem explicar muito.

    Mas estou buscando escrever de uma forma totalmente diferente também, como a que você usa, descrever o lado oposto dessas criaturas! Já pensei em escrever vários contos e uni-los de alguma forma e tenho várias outras ideias que ainda quero colocar no papel.

    Vou ler seu conto sim! E sempre que tiver um tempo vou dar uma olhada nos outros.

    Obrigado pelo comentário!
    Sucesso!

    E vamos colocar pra frente aquele grupo que você tinha falado. Hoje em dia pelo Clube dos Autores tá muito fácil publicar um livro de contos.

    Até mais!

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    Respostas
    1. De repente rola uma antologia com um tema específico. Acho que seria maneiro ver o estilo de cada um a partir de um tema em comum.

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    2. Com certeza!
      Definir um tema e pedir pra todo mundo escrever algo sobre aquilo, com regras para controlar quantidade de caracteres e tal. Acho que seria interessante e algo pra ajudar no crescimento pessoal também!

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